-
És o rei dos caiporas, e, além disso, não tens a menor parcela de bom senso!
Não fosse eu tua mulher, e não sei o que seria de ti, porque decididamente não
te sabes governar!
-
Exageras, nhanhã!
-
Não! não sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna
perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela é cega: cego és tu!
-
Já vês que a culpa não é minha...
-
Quando houve o Encilhamento, só tu não te arranjaste!
-
Mas também não me desarranjei...
-
Para seres promovido a 1 o oficial da tua Repartição, foi preciso que eu saísse
dos meus cuidados e procurasse o ministro.
-
Fizeste mal.
-
Se o não fizesse, não passarias da cepa torta!
-
Não quero obscurecer o mérito da tua diligência, mas olha que estás enganada,
nhanhã.
-
Deveras?
-
Redondamente enganada. A nomeação era minha. Quando fui agradecê-la ao
ministro, este disse-me: "Não era preciso que sua senhora se incomodasse:
o decreto estava lavrado."
-
Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente,
lavrado? Á última hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se és tão
caipora!
-
Perdoa, nhanhã, mas não sou tão caipora assim... Pelo menos tive uma grande
felicidade na vida!
-
Qual foi, não me dirás?
-
A de ter casado contigo...
Nhanhã
mordeu os lábios, porque não achou o que responder, e naquele dia as suas impertinências
habituais não foram mais longe.
* * *
O
pobre Reginaldo - assim se chamava o marido - habituara-se de muito àquelas
recriminações insensatas, e era um quase fenômeno de resignação e paciência.
Ela
bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar
pelos cabelos: o que nhanhã não lhe perdoava era a sua pobreza, - não era o seu
caiporismo. Ela não podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa
do pai; não podia rivalizar com alguma amiga em ostentação: era isto, só isto
que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher.
* * *
Reginaldo
tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto,
uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se à casa, e no Largo do Machado,
onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto
que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, - uma grande loteria
de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo
resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo;
mas de repente lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia ser a
fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e
foi para casa, onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
* * *
Ele
bem sabia que, se dissesse a nhanhã que havia feito essa despesa extra orçamentária,
não teria a sua aprovação; mas que querem, - o pobre rapaz era um desses
maridos submissos, que não ficam em paz com a consciência quando não contam por
miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao
saber da compra do bilhete, nhanhã pôs as mãos na cabeça:
-
Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom senso...! Aí está! Dez
mil-réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!...
E
seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados
com aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois
disso, nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo,
sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-o.
-
Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinquenta mil
números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia
viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?
Reginaldo
confessou que nem sequer olhara para o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna
disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não
devia argumentar com a fortuna.
-
345! Pois isto é lá número que se compre!
-
Agora não há remédio.
-
Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o
garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
-
Perdoa, nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra!
-
Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro
algarismos! Se tiver cinco, melhor!
-
Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria não
se trocam...
-
Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas e eu tenho muita
sorte!
Reginaldo
não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e
voltou com outro bilhete.
Desta
vez o número tinha cinco algarismos: 38788; nhanhã devia ficar satisfeita.
Não
ficou:
-
Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes.. - Mas,
enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345...
* * *
Pois,
senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com
a sorte grande.
* * *
Imagine-se
o desespero de nhanhã:
-
Então, eu não digo que és o rei dos caiporas?
-
Perdoa, nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha...
-
Cala-te! Se não fosses um songa monga, não me terias feito a vontade!
Ter-me-ias roncado grosso!
-
Ora essa!
-
Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
-
Olha que eu pego na palavra...
-
Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!...
-
Absurdo aconselhado por ti...
-
Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
-
Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me
contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!...
A
boas horas vêm esses protestos de energia!
E
exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem
contos de réis"!, nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a
chorar.
* * *
Mal
que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e
disse-lhe com muito carinho:
-
Sossega. Eu fiz uma coisa... mas vê lá! não ralhes comigo...
-
Que foi?
-
Não troquei o bilhete!
Não
trocaste o bilhete? gritou nhanhã erguendo-se de um salto, com os olhos muito
abertos.
-
Não! pois eu fazia lá essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a
ter agarrado pelos cabelos!
-
Compraste então o outro bilhete?
-
Comprei...
-
Nesse caso... estamos ricos?
-
Temos cem contos.
-
Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito!
-
Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas.
-
Não digas isso!
-
Digo, porque se o não fosse, o número 38788 teria apanhado a sorte imediata...
(Correio
da Manhã, 16 de outubro de 1904)
Disponível em: domínio público.
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