Começaram
a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro, quando eles não
tinham ainda passado dos primeiros obséquios. Assim vai o mundo. Assim se fazem
algumas reputações más, e, o que parece absurdo, algumas boas. Com efeito, há vidas
que só têm prólogo; mas toda a gente fala do grande livro que se lhe segue, e o
autor morre com as folhas em branco. No presente caso, as folhas escreveram-se,
formando todas um grosso volume de trezentas páginas compactas, sem contar as
notas. Estas foram postas no fim, não para esclarecer, mas para recordar os
capítulos passados; tal é o método nesses livros de colaboração. Mas a verdade
é que eles apenas combinavam no plano, quando a mulher do advogado recebeu este
bilhete anônimo:
"Não
é possível que a senhora se deixe embair mais tempo, tão escandalosamente, por
uma de suas amigas, que se consola da viuvez, seduzindo os maridos alheios,
quando bastava conservar os cachos..."
Que
cachos? Maria Olímpia não perguntou que cachos eram; eram da viúva do
brigadeiro, que os trazia por gosto, e não por moda. Creio que isto se passou
em 1853. Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu
de mulher e disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha das suas amigas,
a ver se descobria a autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e fitou o
tapete do chão, caindo-lhe os olhos justamente no ponto do desenho em que dois
pombinhos ensinavam um ao outro a maneira de fazer de dois bicos um bico. Há
dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o universo. Afinal meteu o
bilhete no bolso do vestido, e encarou a mucama, que esperava por ela, e que
lhe perguntou:
—
Nhanhã não quer mais ver o xale?
Maria
Olímpia pegou no xale que a mucama lhe dava e foi pô-lo aos ombros, defronte do
espelho. Achou que lhe ficava bem, muito melhor que à viúva. Cotejou as suas
graças com as da outra. Nem os olhos nem a boca eram comparáveis; a viúva tinha
os ombros estreitinhos, a cabeça grande, e o andar feio. Era alta; mas que
tinha ser alta? E os trinta e cinco anos de idade, mais nove que ela? Enquanto
fazia essas reflexões, ia compondo, pregando e despregando o xale.
—
Este parece melhor que o outro, aventurou a mucama.
—
Não sei... disse a senhora, chegando-se mais para a janela, com os dois nas
mãos.
—
Bota o outro, nhanhã.
A
nhanhã obedeceu. Experimentou cinco xales dos dez que ali estavam, em caixas,
vindos de uma loja da rua da Ajuda. Concluiu que os dois primeiros eram os
melhores; mas aqui surgiu uma complicação — mínima, realmente — mas tão sutil e
profunda na solução, que não vacilo em recomendá-la aos nossos pensadores de
1906. A questão era saber qual dos dois xales escolheria, uma vez que o marido,
recente advogado, pedia-lhe que fosse econômica. Contemplava-os alternadamente,
e ora preferia um, ora outro. De repente, lembrou-lhe a aleivosia do marido, a
necessidade de mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe que não era peteca de
ninguém, nem maltrapilha; e, de raiva, comprou ambos os xales.
Ao
bater das quatros horas (era a hora do marido) nada de marido. Nem às quatro,
nem às quatro e meia. Maria Olímpia imaginava uma porção de coisas aborrecidas,
ia à janela, tornava a entrar, temia um desastre ou doença repentina; pensou
também que fosse uma sessão do júri. Cinco horas, e nada. Os cachos da viúva
também negrejavam diante dela, entre a doença e o júri, com uns tons de
azul-ferrete, que era provavelmente a cor do diabo. Realmente era para exaurir
a paciência de uma moça de vinte e seis anos. Vinte e seis anos; não tinha
mais. Era filha de um deputado do tempo da Regência, que a deixou menina; e foi
uma tia que a educou com muita distinção. A tia não a levou muito cedo a bailes
e espetáculos. Era religiosa, conduziu-a primeiro à igreja. Maria Olímpia tinha
a vocação da vida exterior, e, nas procissões e missas cantadas, gostava
principalmente do rumor, da pompa; a devoção era sincera, tíbia e distraída. A
primeira coisa que ela via na tribuna das igrejas, era a si mesma. Tinha um
gosto particular em olhar de cima para baixo, fitar a multidão das mulheres
ajoelhadas ou sentadas, e os rapazes, que, por baixo do coro ou nas portas
laterais, temperavam com atitudes namoradas as cerimônias latinas. Não entendia
os sermões; o resto, porém, orquestra, canto, flores, luzes, sanefas, ouros,
gentes, tudo exercia nela um singular feitiço. Magra devoção, que escasseou
ainda mais com o primeiro espetáculo e o primeiro baile. Não alcançou a
Candiani, mas ouviu a Ida Edelvira, dançou à larga, e ganhou fama de
elegante.
Eram
cinco horas e meia, quando o Galvão chegou. Maria Olímpia, que então passeava
na sala, tão depressa lhe ouviu os pés, fez o que faria qualquer outra senhora
na mesma situação: pegou de um jornal de modas, e sentou-se, lendo, com um
grande ar de pouco caso. Galvão entrou ofegante, risonho, cheio de carinhos,
perguntando-lhe se estava zangada, e jurando que tinha um motivo para a demora,
um motivo que ela havia de agradecer, se soubesse...
—
Não é preciso, interrompeu ela friamente.
Levantou-se;
foram jantar. Falaram pouco; ela menos que ele, mas em todo o caso, sem parecer
magoada. Pode ser que entrasse a duvidar da carta anônima; pode ser também que
os dois xales lhe pesassem na consciência. No fim do jantar, Galvão explicou a
demora; tinha ido, a pé, ao teatro Provisório, comprar um camarote para essa
noite: davam os Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar um carro...
— Os
Lombardos? interrompeu Maria Olímpia.
—
Sim; canta o Laboceta, canta a Jacobson; há bailado. Você nunca ouviu os
Lombardos?
—
Nunca.
— E
aí está por que me demorei. Que é que você merecia agora? Merecia que eu lhe
cortasse a ponta desse narizinho arrebitado...
Como
ele acompanhasse o dito com um gesto, ela recuou a cabeça; depois acabou de
tomar o café. Tenhamos pena da alma desta moça. Os primeiros acordes dos
Lombardos ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre,
espécie de Requiem. E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente
não era outra coisa: alguma invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para
fazê-los brigar. Era isto mesmo. Entretanto, uma vez que estava avisada, não os
perderia de vista. Aqui acudiu-lhe uma idéia: consultou o marido se mandaria
convidar a viúva.
—
Não, respondeu ele; o carro só tem dois lugares, e eu não hei de ir na boléia.
Maria Olímpia sorriu de contente, e levantou-se. Há muito tempo que tinha
vontade de ouvir os Lombardos. Vamos aos Lombardos! Trá, lá, lá, lá... Meia
hora depois foi vestirse. Galvão, quando a viu pronta daí a pouco, ficou
encantado. Minha mulher é linda, pensou ele; e fez um gesto para estreitá-la ao
peito; mas a mulher recuou, pedindo-lhe que não a amarrotasse. E, como ele, por
umas veleidades de camareiro, pretendeu concertar-lhe a pluma do cabelo, ela
disse-lhe enfastiada: — Deixa, Eduardo! Já veio o carro? Entraram no carro e
seguiram para o teatro. Quem é que estava no camarote contíguo ao deles? Justamente
a viúva e a mãe. Esta coincidência, filha do acaso, podia fazer crer algum
ajuste prévio. Maria Olímpia chegou a suspeitá-lo; mas a sensação da entrada
não lhe deu tempo de examinar a suspeita. Toda a sala voltara-se para vê-la, e
ela bebeu, a tragos demorados, o leite da admiração pública. Demais, o marido
teve a inspiração, maquiavélica, de lhe dizer ao ouvido: "Antes a
mandasses convidar; ficava-nos devendo o favor." Qualquer suspeita cairia
diante desta palavra. Contudo, ela cuidou de os não perder de vista — e renovou
a resolução de cinco em cinco minutos, durante meia hora, até que, não podendo
fixar a atenção, deixou-a andar. Lá vai ela, inquieta, vai direito ao clarão
das luzes, ao esplendor dos vestuários, um pouco à ópera, como pedindo a todas
as coisas alguma sensação deleitosa em que se espreguice uma alma fria e
pessoal. E volta depois à própria dona, ao seu leque, às suas luvas, aos
adornos do vestido, realmente magníficos. Nos intervalos, conversando com a
viúva, Maria Olímpia tinha a voz e os gestos do costume, sem cálculo, sem
esforço, sem ressentimento, esquecida da carta. Justamente nos intervalos é que
o marido, com uma discrição rara entre os filhos dos homens, ia para os
corredores ou para o saguão pedir notícias do ministério.
Juntas
saíram do camarote, no fim, e atravessaram os corredores. A modéstia com que a
viúva trajava podia realçar a magnificência da amiga. As feições, porém, não
eram o que esta afirmou, quando ensaiava os xales de manhã. Não, senhor; eram
engraçadas, e tinham um certo pico original. Os ombros proporcionais e bonitos.
Não contava trinta e cinco anos, mas trinta e um; nasceu em 1822, na véspera da
independência, tanto que o pai, por brincadeira, entrou a chamá-la Ipiranga, e
ficou-lhe esta alcunha entre as amigas. Demais, lá estava em Santa Rita o
assentamento de batismo.
Uma
semana depois, recebeu Maria Olímpia outra carta anônima. Era mais longa e
explícita. Vieram outras, uma por semana, durante três meses. Maria Olímpia leu
as primeiras com algum aborrecimento; as seguintes foram calejando a
sensibilidade. Não havia dúvida que o marido demorava-se fora, muitas vezes, ao
contrário do que fazia dantes, ou saía à noite e regressava tarde; mas, segundo
dizia, gastava o tempo no Wallerstein ou no Bernardo, em palestras políticas. E
isto era verdade, uma verdade de cinco a dez minutos, o tempo necessário para
recolher alguma anedota ou novidade, que pudesse repetir em casa, à laia de
documento. Dali seguia para o largo de São Francisco, e metia-se no
ônibus.
Tudo
era verdade. E, contudo, ela continuava a não crer nas cartas. Ultimamente, não
se dava mais ao trabalho de as refutar consigo; lia-as uma só vez, e
rasgava-as. Com o tempo foram surgindo alguns indícios menos vagos, pouco a
pouco, ao modo do aparecimento da terra aos navegantes; mas este Colombo
teimava em não crer na América. Negava o que via; não podendo negá-lo,
interpretava-o; depois recordava algum caso de alucinação, uma anedota de
aparências ilusórias, e nesse travesseiro cômodo e mole punha a cabeça e
dormia. Já então, prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas e
jantares, iam a bailes, teatros, corridas de cavalos. Maria Olímpia vivia
alegre, radiante; começava a ser um dos nomes da moda. E andava muita vez com a
viúva, a despeito das cartas, a tal ponto que uma destas lhe dizia:
"Parece que é melhor não escrever mais, uma vez que a senhora se regala
numa comborçaria de mau gosto." Que era comborçaria? Maria Olímpia quis
perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e não pensou mais nisso.
Entretanto,
constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de quem?
Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória as
pessoas que lhe freqüentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros ou
bailes, e achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam
adoradores.
—
Cartas de quem? repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.
Durante
sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e gastando
em casa grande parte do tempo. No oitavo dia, veio uma carta.
—
Para mim? disse ele vivamente.
—
Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia, lendo o sobrescrito; parece letra de
Mariana ou de Lulu Fontoura...
Não
queria lê-la; mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave.
Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a, sorrindo; ia guardá-la, quando o marido
desejou ver o que era.
—
Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.
—
Qual! é um negócio de moldes.
—
Mas deixa ver.
—
Para quê, Eduardo?
—
Que tem? Você, que não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá.
Já
não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três
vezes. Teve mesmo idéia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo
até o fim. Realmente, era uma situação original. Quando ela viu que não tinha remédio,
determinou ceder. Que melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da
verdade? A carta era das mais explícitas; falava da viúva em termos crus. Maria
Olímpia entregou-lha.
—
Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que
tenho recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para...
Leia, leia a carta.
Galvão
abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura,
para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele,
depois de alguns minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia
composta e um esboço de sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu
ainda de cabeça baixa; só a levantou daí a três ou quatro minutos, e não para
fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como se temesse descobrir-lhe nos olhos a
confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um
Redobraram as cautelas do
marido; parece também que ele não pôde esquivar-se a um tal ou qual sentimento
de admiração para com a mulher. Pela sua parte, a viúva, tendo notícia das
cartas, sentiu-se envergonhada; mas reagiu depressa, e requintou de maneiras
afetuosas com a amiga.
Na
segunda ou terceira semana de agosto, Galvão fez-se sócio do Cassino
Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis de setembro fazia anos a viúva,
como sabemos. Na véspera, foi Maria Olímpia (com a tia que chegara de fora)
comprar-lhe um mimo: era uso entre elas. Comprou-lhe um anel. Viu na mesma casa
uma jóia engraçada, uma meia lua de diamantes para o cabelo, emblema de Diana,
que lhe iria muito bem sobre a testa. De Maomé que fosse; todo o emblema de
diamantes é cristão. Maria Olímpia pensou naturalmente na primeira noite do
Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo, quis comprar a jóia, mas era tarde,
estava vendida.
Veio
a noite do baile. Maria Olímpia subiu comovida as escadas do Cassino. Pessoas
que a conheceram naquele tempo, dizem que o que ela achava na vida exterior,
era a sensação de uma grande carícia pública, a distância; era a sua maneira de
ser amada. Entrando no Cassino, ia recolher nova cópia de admirações, e não se
enganou, porque elas vieram, e de fina casta.
Foi
pelas dez horas e meia que a viúva ali apareceu. Estava realmente bela, trajada
a primor, tendo na cabeça a meia lua de diamantes. Ficava-lhe bem o diabo da
jóia, com as duas pontas para cima, emergindo do cabelo negro. Toda a gente
admirou sempre a viúva naquele salão. Tinha muitas amigas, mais ou menos
íntimas, não poucos adoradores, e possuía um gênero de espírito que espertava
com as grandes luzes. Certo secretário de legação não cessava de a recomendar
aos diplomatas novos: "Causez avec Mme. Tavares; c'est adorable!"
Assim era nas outras noites; assim foi nesta.
—
Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olímpia,
perto de meia-noite.
—
Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer
os lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: —
Ipiranga, você está hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum
marido?
A
viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia acrescentou, com os
olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama no triunfo.
Já no resto da noite falaram pouco; três dias depois romperam para nunca mais.
Fonte: ASSIS, Machado de.
Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
Disponível em: domínio público
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